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VISITA À MAQUETE

 

Uma visita é uma passagem, não uma permanência. Em geral, visita-se uma pessoa quando há uma relação de afeto. Inclusive, muitas vezes, visita-se alguém para retribuir uma visita. Pois em uma sexta-feira, fizemos uma visita. Uma visita a uma maquete. Poderíamos haver dito que iríamos conhecer a maquete, ver a maquete, mas não, preferi chamar aquele passeio de visita à maquete. Havia uma relação pessoal – de minha parte – de afeto de muitos anos em relação à maquete. Dos outros visitantes, posso dizer que havia uma curiosidade; do que se tratava exatamente aquilo que iriam ver? Existiria de fato a tal maquete sobre a qual havíamos comentado na semana anterior?

 

Voltando ao afeto. A maquete havia me afetado. E estava em algum canto de meu pensamento já há uns sete anos. Havia escutado a respeito dela durante pesquisas sobre o Campus Central da UFRGS para o estudo de doutorado. Na época, minha orientadora que trabalha com a pesquisa “As extensões da memória”¹ maquete sobre um Centro Cultural na UFRGS. Seria interessante dares uma olhada”. Fui lá. A maquete estava no setor de Patrimônio Histórico da UFRGS, no ex-prédio da química, encostada à parede. Media mais ou menos um metro e meio e estava coberta por uma estrutura transparente de acrílico. Dentro, o modelo do projeto do Centro de Cultura para o Campus Central da UFRGS.

 

O impacto foi imediato: junto aos prédios do campus surgia diante meus olhos uma ágora, bancos, espelho d’água, quadra de esportes, árvores e pouquíssimo local para estacionamento. A maquete indicava que alguém havia pensado no campus como um lugar para priorizar encontros: com a própria universidade, mas também com seu entorno – a cidade ao redor poderia finalmente entrar no campus. Portas abertas² uma vez ao ano? Confesso que aquela possibilidade me impactou, pois parecia algo inimaginável em um contexto feito cada vez de mais grades, catracas, portas e portões fechados. Esse era o meu cotidiano na universidade: um percurso de cartão de segurança a ser identificado com minha foto para poder entrar e sair nos prédios, para poder acessar a sala de aula. Por isto a maquete havia me afetado: ela propunha outra possibilidade de campus. E o mais surpreendente: a ideia de um campus para o convívio era relativamente recente e havia partido de um reitor³.

 

Comecei a comentar sobre a maquete com outras pessoas da UFRGS. Ninguém havia escutado falar da tal maquete, muito menos do Centro de Cultura. Como? Seria possível que ninguém soubesse daquele projeto? Comecei a falar insistentemente sobre o assunto com as pessoas, a torturá-las com a história da maquete: “Já ouviste falar sobre a maquete do Centro de Cultura? Não? Ah, mas tens que conhecê-la…” e desfiava em encontros para cafezinhos, festas, nos corredores do Instituto de Artes a ladainha do projeto do Centro de Cultura. A sorte de meus colegas e alunos foi que viajei para terminar o doutorado e a história da maquete ficou no passado. Mas, mal voltei a Porto Alegre, trouxe novamente o assunto à baila e em 2013 uma das minhas bolsistas fez uma entrevista com o propositor da maquete, o prof. Francisco Ferraz. Outra bolsista foi fotografar a maquete.⁴

 

Dois anos depois, em 2015, a história voltou à cena ao assistir a apresentação de Ricardo Moreno sobre um projeto que ele desenvolveu no campus da Universidade de Tolima, na Colômbia. O projeto favorecia o uso de bicicletas no campus: menos estacionamento, menos carros e mais bicicletas. As imagens que Moreno mostrou falaram por si: sem os carros, o campus de Tolima havia se tornado um lugar muito melhor. A felicidade com aquele projeto alimentou novamente em minha memória a semente da maquete do Centro de Cultura. E voltei à baila com a velha pergunta: “Vocês conhecem a maquete do Centro de Cultura?” Nada, ninguém conhecia. Só a bolsista que havia feito as fotos da maquete no ano anterior. Foi aí que convidei o grupo que assistia a apresentação de Moreno para visitarmos a maquete. Uma das participantes ficou encarregada de marcar a visita no setor de Patrimônio Histórico da UFRGS. Dias depois, recebi um e-mail: “Não sabem onde está a maquete, mas vão tentar localizá-la”. Até o dia da visita nos perguntávamos: “Terá ela desaparecido?” Mas, no dia marcado, lá estava ela nos esperando, com mostras de que passara por uma rápida limpeza para retirar camadas de pó acumulado. Havia sido trazida para junto à porta de entrada da sala do prédio onde estava alojado provisoriamente o setor do patrimônio da UFRGS. (O setor havia sido transferido porque partes de seu prédio anterior corriam o risco de cair e teria que ser restaurado. O prédio do setor de patrimônio ruindo…). A maquete havia sido colocada sobre dois gaveteiros de metal para que a víssemos. Quem nos recebeu foi o historiador Diego Speggiorin, que foi logo avisando: “Não sei muito sobre a maquete, tampouco sabia onde estava. Mas vou conversar futuramente com uma colega que conhece mais a história deste projeto.” Observamos aquela estrutura, tentando reconhecer nela o lugar onde se localizam os prédios atualmente. Foi um exercício de entender onde estávamos em relação ao que a maquete propunha como possibilidade.

 

Poderia falar da maquete para falar de utopia. A maquete aponta para outra possibilidade (possível?). Mas ela me leva a falar de desconhecimento. E de esquecimento. E de esquecimento recente. Também de não visibilidade. E também da pouca relação que temos atualmente com a memória.  Ao perder a relação com a memória, vivemos um tempo presente. O que significa viver um tempo presente?  Por que o esquecimento ou a total falta de visibilidade da comunidade acadêmica em relação a um projeto relativamente recente e que havia sido a menina dos olhos de um reitor? Talvez porque o espaço público do campus tenha tido, em sua grande parte, outro destino: o de estacionamento. Onde antes havia uma quadra de esportes, agora encontramos carros, onde antes havia espaço livre de convívio, agora, carros. Poderíamos brincar com duas palavras: ágora e agora. E o agora-ágora do Campus Central estava preenchido por carros. A possibilidade que a universidade nos apresenta nos anos 2000 são as possibilidades de estacionamento. Porque o espaço físico do Campus Central se parece ao que poderia ser encontrado em qualquer outra instituição (empresa, montadora, supermercado): um parque de estacionamento. O que esta constituição propõe é homogeneidade, é repetição, nada se experimenta neste local. A resposta à pergunta inicial deste parágrafo pode estar relacionada a que provavelmente a memória de um campus voltado ao convívio e à reunião contrastaria muito com um ágora transformado em um parque de estacionamento.

 

Ao olhar para as imagens de como o Campus Central da UFRGS esteve constituído em décadas, anos anteriores, vemos que ele guarda possibilidades de ser outro, de ser diferente ao que encontramos diante de nossos olhos no tempo presente. Também podemos encontrar rastros do que o levou a ser como se encontra atualmente. E aí reside a importância da memória porque, diferentemente do que poderia parecer, a memória não é estática, muito ao contrário, ela pode dar mobilidade às situações. Viver somente no tempo presente gera uma espécie de imobilismo, de ignorância, pois não se pode comparar, referenciar o que construímos.  Buscar a memória a partir de um projeto que segue como utopia pode também ser sinônimo, referência não somente de passado, mas de possibilidades futuras. Quando vemos sejam as imagens do Campus Central, ao longo dos anos, quanto a maquete do Centro de Cultura, o que acontece é uma conexão com outros possíveis.

 

¹Pesquisa “As extensões da memória, a experiência artística e outros espaços”, coordenada por Maria Ivone dos Santos, disponível em: http://www.ufrgs.br/extensoesdamemoria/

 

²Portas Abertas é um programa da UFRGS no qual uma vez ao ano a comunidade estudantil (nível secundário) vem até a universidade para conhecer sua estrutura, atividades e cursos. Informações em: http://www.ufrgs.br/portasabertas

 

³Projeto proposto pelo ex-reitor Francisco Ferraz, entre os anos 1984-88.

 

⁴As pesquisas do grupo Cidadania e Arte podem ser acessadas no link: https://cidadaniaearte.wordpress.com/ As bolsistas foram Milene Tafra e Evelyn Lima, respectivamente.

 

Cláudia Zanatta

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