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PADARIA – POR MILENE TAFRA

 

Fomos fazer pão no pátio do Campus Central da UFRGS. Instalamos duas panificadoras no chão, junto ao estacionamento ao lado do Museu, e um forninho diante do Banco do Brasil. Ligamos os eletrodomésticos a extensões plugadas em tomadas elétricas dos citados estabelecimentos, contando com autorização verbal de seus respectivos responsáveis.

 

Claro que chegamos a pensar que poderíamos ser abordadas por algum fiscal, prevendo uma reação adversa decorrente do estranhamento. É que as pessoas buscam “ilegalizar” aquilo que desconhecem e que não sabem nominar, embora o direito posto (escrito) ocupe-se tão somente de arrolar e proibir as condutas ilícitas, ao invés de dispor sobre o que é permitido, porquanto o inverso resultaria em impossível codificação, pela infinitude de possibilidades de atuações lícitas.

 

Esse pensamento trágico, de recusa do desconhecido, é mesmo um velho um clichê, e está representado em filmes em que um dos personagens tem algum um poder especial, ou que é um alienígena, e por ser estranho ao comum (aceito como padrão normativo), deve esconder-se. É a sina do homem-elefante. O estranho inofensivo deve ser punido e contido.

 

Mas seria possível que alguém chegasse ao ponto de “ilegalizar” mentalmente o simples deslocamento de um lanche da cozinha para o pátio da Universidade?

 

Pois não tardou, chegou-nos um homem interrogando o que estávamos fazendo ali. Eu estava de costas, agachada, guardando a máquina-fotográfica. Olhei para o cidadão e, considerando que ele não estava uniformizado, conclui que era mais alguém curioso ou querendo um “pedaço”. Disse que estávamos fazendo e comendo pão. Ofereci-lhe. Daí para frente, tive de identificar-me, e todas nós tivemos que nos explicar. Uma energia enorme foi investida por este homem em busca de uma solução para aquela situação estranha. Falou com sua base por meio de seu telefone celular. Buscou reforços.

 

Se estivéssemos assando os pães dentro da sala de cerâmica, não haveria questionamentos. Mesmo dentro do Museu, poderíamos fazer o pão, servir e comê-lo, com generosidade e compartilhamento. Também, creio que ninguém teria sido capaz de achar problemas se tivéssemos distribuído o pão pelo Campus central, de forma ambulante, como degustação.

 

Mas não foi aceitável, para este Sr., que o pão e a geleia ficassem generosamente disponíveis sobre uma mesinha, ainda que não estivessem à venda nem a obstruir a passagem, que não fizesse barulho nem propagasse ideologias.

 

Explicamos ao Sr. Fiscal que conhecíamos as regras internas, que tão somente eram proibitivas quanto ao comércio.

 

O que incomodava o Sr. Fiscal?

 

Ele disse: Eu não consigo nem dar um nome para “isto” que estão fazendo! Eu não sei o que é isto; qual o nome, o que significa.

 

E nós respondemos: O nome disto é “pão”.

 

Ele resolveu que aquilo era uma “banca”, embora não houvesse sinais de comércio. Explicou-nos que outro dia doavam bíblias em uma banca, e isso não podia ocorrer ali. Ele mesmo diferenciou a situação das bíblias do nosso lanche, dizendo que: claro, era proibida a doação das bíblias porque o Estado é laico e a UFRGS uma Instituição Federal.

 

Pois então não estávamos doando nada, muito menos algo proibido.

 

Tivemos de retirar a mesinha de 1m x 1m, para satisfazer a angústia do Sr. Fiscal.

 

Porém, ele ainda não conseguiu tranquilizar-se. Impôs-nos que pedíssemos autorização por escrito na Prefeitura da UFRGS para assar os pães e comê-los, inobstante a responsável pelo Museu já tivesse autorizado verbalmente, e confirmado isso junto a ele. O Sr., inquieto, disse-nos que todos os eventos que acontecem no Campus devem ser precedidos de pedido de autorização. Que todo mundo pede autorização do Prefeito e que, por isso, nós também teríamos de fazê-lo. Explicamos que não poderíamos pedir algo que não está proibido em alguma regra de direito positivada. Este pedido não teria objeto jurídico uma vez que aquilo que a lei não coíbe é permitido. É isso que diz o artigo 5º da Constituição Federal brasileira, de 1988, ao garantir que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Como não estávamos obstruindo a passagem, nem abordando as pessoas, e muito menos instaladas de forma permanente, não houve infração de regra alguma. Nada nos proíbe de fazer e comer o pão no pátio do Campus Central.

 

O Sr. Fiscal, atônito, buscou empecilhos à atividade “sem nome” de outra forma. Voltou-se contra o uso da energia elétrica que passa pelos fios do museu assim como por todas as salas da Universidade, e fica disponível em suas tomadas, embora tivéssemos reiterado que havia prévia autorização verbal da responsável. De qualquer forma, considerando que a energia elétrica advinda da tomada do Museu é a mesma que passa pela sala de Cerâmica, e que se tivéssemos assado naquela sala, ou mesmo dentro do Museu, tudo teria sido invisível e permitido aos olhos da fiscalização, mais uma vez, não houve como compreender a irresignação do Sr. Fiscal. A responsável do Museu disse que ele estava fazendo o seu trabalho, com o que discordamos, uma vez que o ato de “ilegalizar” condutas não proibidas na legislação não pode ser considerado o trabalho de ninguém. O Sr. Fiscal deveria, isto sim, circular pelo Campus para averiguar se tudo estava correndo bem, preocupando-se com as condutas passíveis de enquadramento segundo as regras de direito, e não, com as condutas que não entende ou não conhece.

 

Escolhendo pela antilógica e “ilegalização” do Sr. Fical, a responsável do Museu, contrariada, mas assertiva, pediu-nos que encerrássemos nossa atividade em cinco minutos, quando iria bater as 12 badaladas, embora tivesse autonomia para decidir pelo uso das tomadas internas, de onde puxávamos a energia necessária para assar os pães. Retiramos o cesto de 40cm de diâmetro com o restante do pão que havíamos levado pronto, o pote de geleia e os eletrodomésticos do chão.

 

Há necessidade de autorização para passar café em cada uma das salas em que isso é feito? Todas as pessoas que fazem uma torrada, ou esquentam água com “rabo quente”, ou mesmo aquecem alimentos em micro-ondas estão portando uma autorização? Há alguma regra proibitiva de que o café seja passado fora da sala? A energia elétrica que passa pela fiação de cada prédio distingue-se de acordo com a tomada do local?

 

Parecem absurdas estas perguntas, mas foram os motivos que impediram a propagação do cheiro dos pãezinhos assando ao ar-livre e a alimentação dos olfatos dos passantes.

Fotos: Evelyn Lima
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