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ENTREVISTA A FRANCISCO FERRAZ

O CENTRO DE CULTURA CAMPUS CENTRAL

 

Entrevista com Francisco Ferraz*, Ex-Reitor da UFRGS, sobre o Centro Cultural planejado para o Campus Central Universitário, realizada em 2013 por Milene Tafra**

 

Para quem nunca ouviu falar a respeito do Centro Cultural projetado para o Campus Central da UFRGS, explico tratar-se de uma complexa obra,pensada e lançada nos anos 80, por Francisco Ferraz, então Reitor da Universidade. Muitas empreitadas relativas ao projeto, há época implementadas, ainda valorizam o espaço central como um cenário de fruição de conhecimento e cultura. São frutos desta empreitada, o cinema universitário Sala Redenção, a sala de teatro Qorpo Santo, a reforma e ampliação do Salão de Atos e o Museu da UFRGS. A proposta inicial abrangia um novo plano diretor para a Universidade, a restauração dos prédios históricos do Campus Central, a construção de outros espaços, incluindo um anfiteatro ao ar livre e a retirada de galpões e instalações provisórias, com a liberação de espaço para o convívio.

Em junho deste ano, procurei pelo ex-Reitor da UFRGS Francisco Ferraz para entrevistá-lo sobre o projeto do Centro Cultural para o Campus Central da Universidade lançado em seu mandato exercido de 1984 a 1988. Recebeu-me em sua casa com simpatia e relatou muitos detalhes da história do Centro Cultural. Mostrou-me vasta documentação a respeito, como notícias em jornais da época, tanto da UFRGS quanto nos de grande circulação, além de lindos cartazes dos eventos culturais que foram realizados. Doou-me material explicativo, constituído por um texto de sua lavra, datado de 2004, onde relata sua atuação enquanto membro da administração da Universidade, um dos cartazes citados e o folheto da programação de férias de julho de 1986 para o Centro Cultural.

 

Na conversa, deixou transparecer seu entusiasmo pelo projeto, e pesar pela UFRGS tê-lo abandonado. Esculpio-o em palavras, a fazer-me concretizá-lo em minha mente. Finda a conversa, o sonho acabou, e lembrei das gambiarras, galpões e estacionamentos que constituem o fenótipo do atual Campus Central da UFRGS. Ouvi-lo fez-me ver a promiscuidade da promessa de um novo prédio às artes no Centro da Capital, e sua realização mais distante do que nunca.

 

Intencionando repassar ao leitor a sonhada imagem de um Campus Central, a meu ver, ideal, ou, ao menos, incomparavelmente melhor daquele hoje suportado pela comunidade acadêmica e pouco ou nada utilizado pela sociedade, relatarei pontos importantes da conversa de quase três horas que tive com o mencionado Ex-Reitor.

 

Francisco Ferraz iniciou sua atuação na gestão universitária, propriamente dita, ao assumir como Pró-Reitor de Planejamento, em 1976. Como Reitor, de 1984 a 1986, dedicou-se à ideia de tornar o Campus Central um polo para entretenimento de lazer educativo e cultural, a ser frequentado e instigado por grande público composto pela sociedade e pela comunidade acadêmica. Almejava, com isso, criar uma referência cultural, no mínimo, para o Estado do Rio Grande do Sul.

 

De fato, conforme consta no site da Universidade, no ano de 1984, foi criado Museu Universitário e a Associação dos Ex-alunos da UFRGS. E em 1986, “do final de julho ao início de agosto, o Campus Central da UFRGS transformou-se num Centro Cultural, com o desenvolvimento de uma intensa e variada programação nesta área. Na realidade, este era apenas o primeiro passo para dar seguimento a uma ideia do reitor Francisco Ferraz: a implantação do Centro Cultural nos prédios históricos da instituição”. Ao ser perguntado sobre como surgiu a ideia do Centro Cultural na UFRGS, contou ter estudado por significativo período no exterior, além de ter viajado diversas vezes para o hemisfério norte. Nos países europeus, visitou entidades e centros culturais, pesquisando o aculturamento e ensino que tais locais proporcionavam, de forma suplementar ao conhecimento passado pelas instituições de ensino obrigatório. Essa imersão no mundo cultural europeu e dos Estados Unidos o fez perceber a existência de uma rede de educação e cultura paralela ao sistema educacional oficial, que propiciava a todos os públicos lazer cultural e educativo, de forma interessante e fertilizadora do conhecimento. Denotou que tais entidades e centros de cultura, embora, por vezes, tivessem nascido a partir de pequenos empreendimentos, com o cuidado e incremento de anos, constituíam-se em importantes polos educativos, uma vez que haviam sido fundadas de longa data, e passavam a contar com acervos centenários. Citou como exemplo o Jardim das Plantas (Paris) transformado, pelo Conde de Buffon (1707-88) em Museu de História Natural. No exterior, as entidades culturais paralelas às de ensino são intensamente frequentadas em horários de lazer por todo o tipo de público. A partir destes fatos, pensou que embora o Brasil seja um País jovem, desprovido de entidades embrionárias ou centenárias nos moldes do Museu de História Natural de Paris, conta com acervos centenários, dentro das próprias Instituições Oficiais de Ensino. Sabia que já havia matéria prima para dar início à construção de entidades culturais dentro das próprias universidades. Daí pensou em lançar mão de um novo modelo, não visto em qualquer lugar do mundo, para desenvolver esta rede paralela de proliferação de conhecimento e cultura para a sociedade e comunidade acadêmica, unindo as forças de um e outro. O Campus Central da UFRGS poderia sediar um protótipo educativo-cultural visando à próspera relação da Universidade com a sociedade e condição cultural do país. Lembrou que, já naquela época, a UFRGS contava com um acervo centenário, na Geociências, de material referente a animais pré-históricos. Ressaltou que a maioria das faculdades da UFRGS possui ótimos acervos, os quais foram constituídos por paixões dos professores. Disse que estava presente o ciúme, mas tal fato, de certa forma, mantinha os acervos bem cuidados. Sublinhou que a UFRGS era, na época, a melhor Universidade do mundo em matéria de cabeça de tecodonte.

 

Contou que a ideia do Centro Cultural, ao ser lançada, foi mal recebida pelo corpo acadêmico, e que teve de engatar a primeira marcha solitário e sujeito a grande resistência. Este projeto era diferenciado e dirigido diretamente pelo Reitor (isto lembrou-me do refrão da música do Engenheiros do Havaí: “Somos um exército – exército de um homem só”). Claro, não foi tão sozinho assim. Afinal, era um Reitor eleito, e tinha seus apoiadores, obviamente. Seguiu seu relato, dizendo que, na medida em que obtinha êxito, angariava simpatizantes que iam engajando-se à proposta. Conforme escreveu em depoimento por escrito datado de 2004, a respeito de seus aliados e nomeados para com ele administrar:

 

Foi esse pequeno exército de aproximadamente 50 pessoas que, após aquele “primeiro dia” ocuparam a Reitoria para começar a nova administração. Era, sem dúvida, um grupo singular. Incluía veteranos e novatos, professores e funcionários, aposentados e da ativa, cobria todas as áreas, ocupavam funções já há muito conhecidas e outras que eram completas novidades. (…) Nada foi mais ilustrativo desse espírito que animava todos, da ousadia de criar, assim como do objetivo maior de levar a Universidade para a sociedade, que a criação do Centro Cultural, com seus dois projetos: a restauração dos prédios históricos e a programação de férias.

 

A intenção era a criação de fatos de grande impacto social, que demonstrassem como seria um Centro Cultural da Universidade, e como seria a cidade com seu Centro Cultural, o que poderia resultar na captação do apoio necessário para realizá-lo. Foi desenvolvida, com a expectativa de comprovar a urgência e viabilidade do Centro Cultural, a programação de férias, com abertura de laboratórios e mostra às pessoas com curiosidade o que era feito naquele local durante o ano todo. Também consistiram em atividades do evento oficinas e palestras. Esta programação ocorreu em julho e dezembro de 1986 e em julho de 1987. Falou ter solicitado aos aproximadamente 3000 professores para que doassem um dia por ano de férias para a comunidade de Porto Alegre, a fim de que abrissem seus laboratórios e mostrassem a visitantes de toda a população suas atividades. Relatou ter sido criado, paralelamente, um sistema, segundo o qual, cada faculdade montaria um programa de apresentação do curso (aponto que esta é a provável origem do atual UFRGS portas abertas). Os mais de 3.500 eventos criados foram frequentados por mais de 200.000 pessoas.

 

Disse ter organizado um grupo de professores que analisava a programação do Centro Cultural. A proposta apresentada tinha como princípio não impor limites à curiosidade na Universidade. Como exemplos de temas para cursos, citou “PC” (que surgia na época), marcenaria (pois os móveis eram feitos na Universidade), balé (academias externas), biblioteca (organização). Para que acontecessem tais cursos, houve envolvimento de pessoas da sociedade e de professores para que acontecessem. Apontou, também, ter sido criado, na sua gestão, o laboratório astronômico, que podia ser visitado pelo público, nos dias dos eventos. Ressaltou que durante sua gestão manteve intercâmbio com o exterior, principalmente com o Diretor da Universide de Heidelberg (Heidelberg/Alemanha), fundada em 1386, uma das mais antigas da Europa.

 

A respeito do novo plano diretor, pressuposto para o implemento do Centro Cultural, transcrevo trecho do citado depoimento por escrito, datado de 2004:

 

Assim, o prédio da antiga Química, seria transformado num Clube de Professores da UFRGS, com restaurante, cantina e Salão para reuniões e festas; o prédio do Parobé seria utilizado para sediar a Biblioteca Central e o nosso valioso acervo de obras raras; o prédio da antiga Faculdade de Medicina para tornar-se um Museu de Ciências; o da Engenharia Velha para ser o grande Museu da História da Universidade; outros prédios históricos seriam adaptados para instalar o Instituto de Artes, com seus diferentes departamentos; e os demais também assumiriam uma função cultural – museus, salas de música, laboratórios de arte, etc.

 

Francisco Ferraz explicou que chegaram a ser iniciados: o Centro Cultural do Estado do Rio Grande do Sul, no Campus Central, visando tornar a Biociências seu museu de Ciência e o Parobé uma biblioteca; o Campus Médico, onde está situada a Faculdade de Medicina, e o Campus do Vale, onde ficariam os laboratórios e as ciências. Para o Vale, foi planejado o transporte por ônibus de forma constante, sendo que estes passariam durante todo o horário de expediente universitário, contornando o Campus inteiro. Porém, desde que instalado o Campus do Vale, não houve possibilidade do projeto de transporte ser implementado por que a rua não foi construída integralmente de forma a circunscrevê-lo.

 

Continuou a relatar outros feitos, como a reforma do Salão de Atos da UFRGS, mediante convênio com o Estado para usá-lo (foram 50 milhões advindos da Prefeitura).

Perguntei-lhe qual sua opinião a respeito do conflito entre a falta de vagas de estacionamento e de ambientes de convívio de propagação e produção cultural no Campus Central, tendo ele respondido que, a seu ver, o problema a respeito de estacionamento deveria ser solucionado pelo governo municipal, discordando da tomada dos espaços do Campus Central por carros.

 

Acredita que as pessoas que o sucederam talvez não tenham tido coragem para integralizar a proposta, pois quando deixou o cargo, havia orçamento aprovado, e tudo já estava posto no papel, em forma de projeto. Para sua decepção, houve a descontinuidade das ideias em progresso quando de sua saída.

 

Fiquei com a impressão de que houve uma centralização de decisões e de planejamento imprópria à emancipação do projeto. Talvez, o cuidado direto o tenha amarrado ao seu genitor e exacerbado a visão paternalista tão característica no país, permitindo a persistência da acomodação das demais pessoas quanto à necessidade ou oportunidade de engajamento e trabalho de equipe. Pode ser que tenha havido uma falha na promoção da independência do projeto, sendo esta, no caso, uma necessidade essencial à sua finalização, uma vez que dependia do apoio de multidão composta tanto pela comunidade acadêmica quanto pela própria sociedade. O projeto deveria constituir-se de obra posta no mundo a se desenvolver, como semente autônoma – não poderia ter um dono, nem ser patenteado, sem o ônus de depender de que este criador estivesse investido de poder para mandar fazê-lo acontecer. Quiçá a urgência e ansiedade em implementar as ideias podem ter sido causa de queima de etapas correspondentes a processos democráticos, que se por um lado atrasariam o início da execução da proposta, por outro, acarretar-lhe- iam uma continuidade, independentemente da presença do seu criador. Se a administração centraliza decisões quanto às prioridades de investimentos, e se os mandatos são por tempo limitado a quatro anos, certamente que a finalização de projetos que não se constituam totalmente nesse prazo podem ser abandonados, ao alvitre de quem está no poder de mando. Isto porque inexistem regras democráticas e aptas para obrigar que uma obra seja concluída, havendo, em geral, limites para fixação de obras que não transcendam o orçamento do gestor no tempo em que assim este permaneça, sendo tal prática afinada à democracia representativa. Mudando as cabeças que determinam os valores, e sendo estes díspares do sucessor para o sucedido, mudam-se os projetos que os exaltam.

 

De qualquer maneira, quando olho para o projeto (as plantas e maquetes existem na própria UFRGS!) e as explicações a respeito advindas do próprio idealizador, é difícil não sentir uma revolta pelo estado do Campus Central: um emaranhado de prédios e alguns galpões com carros estacionados por todos os lados. Por outro lado, procuro entender que erros e acertos foram cometidos neste projeto, cujo saldo foi a descontinuidade da empreitada. Acredito que seria interessante ouvir outras pessoas que vivenciaram o passado, como o sucessor do ex-Reitor entrevistado, para aproximar-se de uma conclusão.

 

 

* Francisco Ferraz é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor-presidente do site Política para Políticos

 

 **Milene Tafra é bolsista voluntária em pesquisa de iniciação científica sobre Arte Participativa e Cidadania Coordenada pela Profa. Me. Cláudia Vicari Zanata

 

***Fotografias realizadas no Setor do Patrimônio Histórico – Área de Pesquisa e Documentação. Fotos: Evelyn Lima

Anfiteatro Aberto.

Museu Universitário – fundado em 1984.

Centro de Cultura Campus Central.

Centro de Cultura Campus Central.

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