Ecótono e Efeitos de Borda: Arte e Comunidade como Zonas de Atrito
Cláudia Zanatta
Instituto de Artes - UFRGS
O título deste texto traz dois conceitos que não provém do campo da arte. São os conceitos de ecótono e de efeito de borda, oriundos da área da biologia. Venho desta área e, ao passar a trabalhar no campo da arte, um pouco da biologia permaneceu em minha prática. Ao trabalhar com propostas vinculadas à arte participativa alguns conceitos da biologia se revelaram importantes ferramentas teóricas para pensar os processos participativos. Talvez seja porque a biologia estude os sistemas vivos. Dizer estudar os sistemas vivos é sinônimo de dizer estudar a complexidade. Provavelmente essa palavra seja fundamental quando trabalhamos com arte e participação vinculadas a grupos sociais que não fazem parte do sistema da arte: complexidade.
Arte e comunidade são dois termos de difícil definição. Este artigo não vai se deter em buscar definições para tais noções, mas pensar no que ocorre quando aproximamos as duas palavras – arte e comunidade. O primeiro que surge quando dois termos entram em contato é uma relação. Se produz uma relação. Por isto que trago aqui os conceitos de ecótono e de efeito de borda. Tais conceitos se referem às relações que se aparecem quando dois sistemas diferentes entram em contato.
O que é ecótono e o que é efeito de borda? Abaixo temos um esquema simplificado:
Ecótono se refere a eco, vocábulo que significa casa e a tonus, que significa tensão. Portanto, “tensão na casa”. Trata-se de uma zona em que dois ecossistemas diferentes entram em contato. Por exemplo, entre o ecossistema da floresta e o ecossistema do campo podemos ter uma zona de transição. O ecótono é a zona em que se dá a passagem de um ecossistema ao outro. Nesta área proliferam diferenças. Aí surgem espécies que não existiam antes que os dois sistemas entrassem em contato. As duas zonas distintas quando se aproximam estabelecem relações. Os sistemas nestas relações tanto vão manter suas individualidades, como também vão gerar algo que não é de um nem de outro: brotam aí elementos e situações que são muito distintas dos dois sistemas que os geraram. O novo contexto produz outros micro-climas, outros modos de habitar um espaço e também outros habitantes, muitos dos quais com características bem diferentes dos dois sistemas geradores. Entre a floresta e o campo pode originar-se, por exemplo, uma mata de arbustos.
O ecótono produz diversidade, multiplicidade. Cria outras espécies ao compartilhar um espaço e um tempo diferenciados. Mas o encontro entre dois sistemas diferentes ocasiona também uma zona de tensão (tensão na casa), e esta tensão é muito intensa especialmente na área em que o contato começa: nas fronteiras, nas bordas.
Efeito de borda se refere à zona em que começa o contato; são as margens dos dois sistemas. Há precariedades nestes locais, inseguranças, resistências, necessidade de negociar espaços, tempos, ocorrem atritos, dissonâncias, mas também conexões, intercâmbios, colaborações; novas possibilidades surgem.
E então, que correlação podem ter tais considerações com o tema arte e comunidade? Acredito que alguns paralelos possam ser estabelecidos entre a complexidade que ocorre na zona de ecótono e o trabalho da arte junto a uma comunidade.
Se pensamos no espaço onde vive uma comunidade, obviamente vemos que nada tem a ver com o espaço de uma galeria, não há um espaço de exposição esperando a que o artista o ocupe. O que há é um espaço já habitado. Que vai fazer o artista em um contexto assim? Quem sabe o que nos move seja o desejo de ir aí justamente porque há algo diferente de nós mesmos, o diferente do conhecido. Em geral, o artista não pertence à comunidade com a qual vai trabalhar (o artista, em geral, pertence à comunidade dos artistas...).
Quando um artista se aproxima de uma comunidade, ele se propõe a sair de sua zona de conforto e ir em direção a possibilidades ainda não pensadas, não experimentadas, não provadas. Há risco quando se sai de uma zona de conforto. O risco de encontrar o que é diferente de nós mesmos implica também em não ser entendido. O deslocamento nos obriga a pensar de outro modo, a pensar até nos hermetismos de nossa linguagem, de nossa prática.
Uma das perguntas que fazemos neste panorama é: o que podemos quando estamos juntos (e somos diferentes)? Qual a contribuição que a arte pode oferecer a uma comunidade? Também se pode perguntar: qual a contribuição que uma comunidade pode dar à arte? O que nos une? O que nos distancia? O que podemos negociar para que se chegue a acordos em um determinado projeto? Há muitas diferenças entre o sistema arte e o sistema comunidade: diferenças de tempo, de espaços, de conceitos, de modos de fazer, de pensar e de atuar no mundo. Como se negocia a partir de posições tão diferentes? Quais são as proximidades necessárias, mas também quais são as distâncias necessárias para que se mantenha uma auto-crítica nos processos gerados? Como propor intercâmbios e experiências significativas?
Acredito que as respostas às perguntas sejam contextuais, vinculadas a cada prática artística comunitária. Mas me parece que alguns pontos são comuns nas relações que se estabelecem entre arte e comunidade: o fato de que as relações também estão também cheias de inércias, de incertezas, de tropeços, de falhas. Desde meu ponto de vista, os processos de trabalho entre arte e comunidade falham quando produzem homogeneidade. Isto ocorre, por exemplo, quando as metas de um dos dois sistemas são supervalorizadas, sejam as metas do artista ou de uma comunidade específica. As metas do artista podem ser diferentes das metas de uma comunidade. Às vezes uma comunidade não é nem consultada em relação aos objetivos de um projeto. Seguidamente vemos em trabalhos com comunidades que um sistema se sobrepõe em relação ao outro, anula as subjetividades, interesses do outro. Isto se percebe quando não há mais tensão, pois a tensão existe somente onde há diversidade. Não vejo como interessante superar esta tensão fruto da diversidade e da multiplicidade. A tensão é eliminada quando se escuta apenas uma voz. Isto não é estar em meio à diferença, que é o que caracteriza o encontro com o outro. Há aqui uma questão de poder. Nem o artista nem a comunidade podem deter o poder nestas relações. Porque quem detém o poder detém o espaço da fala e o espaço da visibilidade e, assim, determina o que tem importância e o que não tem, o que tem significado, o que deve ou não ser valorizado. A isto chamo criar homogeneidade, não diversidade, nem complexidade. É importante considerar que a palavra complexo significa originariamente o que é tecido em conjunto.
Como o percebo, o trabalho da arte com uma comunidade não está sendo feito de modo unilateral, está sendo “tecido em conjunto” pelos partícipes quando há:
- Co-gestão de projetos;
- Autonomia;
- Participação deliberativa em todas as etapas de um projeto;
- Relações que não são do campo da are se estabelecem;
- Intercâmbio de papéis: quem é o artista?
- Quando a arte deixa de ser assunto de especialistas;
- Não representatividade. O artista não representa o projeto, ou o representa e fala em nome do projeto como qualquer outro membro da comunidade. Indícios de que um artista faz um uso instrumental de uma comunidade é quando passa a falar em nome dela. Quando passa a representá-la. Quando somente o artista faz e veicula as imagens dos projetos, publicizando-as;
- Quando a arte não é diluidora de conflitos; pode mediá-los, talvez;
- Quando o caminho é processual. Não atuação mediante fórmulas prontas, modos de fazer preconcebidos. É junto à comunidade que o artista vai aprender o que necessita para sua práxis, não antes. Se há fórmulas prévias, se o artista vai a uma comunidade com um projeto já determinado, desde meu ponto de vista, as relações que se vão estabelecer não terão como base a atenção, consideração real pelo outro e por seu contexto.
Como construir relações que considerem os pontos citados acima na zona de ecótono formada pelo encontro da arte e da comunidade? Me parece que as experiências mais ricas são as que implicam em práticas dialógicas, práticas que buscam a horizontalidade, o intercâmbio e a não imposição de um modo de pensar sobre o outro, buscam acercar-se do diferente não para dizer-lhe que tem que ser igual a nós, mas justamente para nos maravilhar-nos com sua diferença e respeitar sua riqueza de ser humano fruto da complexidade. Experiências de arte comunitária não para ter fórmulas, mas para estar sempre revisando a própria prática. Penso que é necessário que estejamos muito atentos às potencialidades que surgem a partir do encontro de dois sistemas, pois pode que não sejam mais reconhecidas nem como trabalho da comunidade, nem como trabalho da arte. Pode que no encontro surjam outras situações que seguramente terão que inventar seu nome.
Referências:
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Ed. Edusp, 2013.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2005.
ODUM, Eugene; BARRET, Gary. Fundamentos da ecologia. Ed. Thomson Pioneira, 2007.
ZANATTA, Cláudia. Malas-hierbas: análisis de una poética personal en el arte participativo. Disponível em: https://riunet.upv.es/