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A REVOLUÇÃO SOMOS NÓS

 

Autor: Joseph Beuys

 

Boa noite senhoras e senhores! Sinto-me muito feliz por estar aqui junto com vocês, não tanto por meu próprio prazer quanto por considerar útil e importante que todos nós aprendamos a falar dessas coisas.

 

Alguns poderiam achar surpreendente que uma pessoa como eu, geralmente dedicada ao campo artístico, enfrente uma temática de tipo político como esta que é objeto de nosso debate. Posso entender por que tanta gente não tem mais confiança em conceitos desse tipo. Posso até mesmo imaginar os comentários: “Lá vem de novo a história da democracia, do socialismo e da liberdade. A mesma velha história!”.

Mas voltemos ao tema de nosso debate. Pergunto-me quanto tempo ainda pode durar tal jogo. Por quanto tempo as pessoas continuarão a votar em partidos e em seus representantes, ou melhor, em conceitos vazios de significado e de conteúdo? Por quanto tempo as pessoas continuarão a acreditar no chamado “parlamentarismo”? Estas são as questões crucias. Gostaria de acrescentar que conceitos como “democracia” e “socialismo” são de extrema importância, pelo menos no plano teórico, apesar de antipáticos, nos dias que correm, à consciência de pessoas que parecem ter perdido qualquer interesse mais profundo por slogans vazios de conteúdo.

 

Acredito contudo, que falta ai um conceito fundamental: falta o conceito da “liberdade”. Não que não se tenha discutido suficientemente sobre tal conceito. Isso já foi feito até demais. Mas nunca no sentido em que o entendo e eu explicitarei a seguir.

 

Tenho a impressão de que foi totalmente negligenciado o fato de que democracia e socialismo só seriam realizáveis a partir do conceito de liberdade.

 

E é em nome dessa liberdade, fato intelectual e de pensamento, que me sinto autorizado a falar na presença de vocês, reunindo tudo o que pude aprender e verificar através da minha experiência direta de trabalho. Falarei, portanto, de meus problemas de artista e professor. Do pensamento humano, da criatividade e da economia.

 

A liberdade concerne essencialmente ao campo do direito e da constituição democrática. Mas diz respeito também à vida econômica – como comportar-se “fraternamente” no campo econômico?

 

Vou agora fixar estes conceitos no quadro-negro: democracia, fraternidade, socialismo, igualdade. A igualdade, esta é o conceito justo do qual partir.

 

Trata-se, na prática, dos três grandes ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Três conceitos que irão se conectar, segundo uma ordem de prioridades bem específica, ao conceito de criatividade humana no âmbito da escola, da universidade e da cultura em geral. Gostaria de lembrar que falo essencialmente na ótica da minha experiência artística, e portanto, da arte. De resto, aliás, não seria verdade que quando o homem quer fazer uma revolução, ou melhor, quando decide mudar as condições de seu mal-estar, deve necessariamente dar início às mudanças na esfera cultural, operando nas escolas, nas universidades, na cultura, na arte e, em termos gerais em tudo aquilo que diz respeito à criatividade? A mudança deve ter início no modo de pensar, e só a partir desse momento, desse momento de liberdade, será possível pensar em mudar o resto.

 

É no pensamento que reside o núcleo da mudança, a partir do qual pode brotar o eixo de democracia e da constituição democrática.

Mas projetei-me muito à frente no tempo: estou falando de um futuro e de condições ainda absolutamente inexistentes.

Já me referi ao verdadeiro significado do termo “democracia”. Não aquele usado pelos partidos políticos em suas palavras de ordem propagandística, mas a acepção mais rela do termo: “poder ao povo”.

 

Devemos apontar para um sistema que permita ao povo, vale dizer a todos os indivíduos residentes em um determinado pais, dar sua própria contribuição para a realização de uma constituição realmente democrática. Este deve ser o nosso objetivo. A democracia deve ser construída não pelos partidos, não pelo domínio prevaricante de uma minoria, mas pela contribuição e pela participação de todos os cidadãos.

Estas linhas representam os direitos fundamentais. Um exemplo de direito fundamental são as leis que regem a propriedade da terra.

O eixo democrático é muito importante. Toda reivindicação de liberdade deve ter limites a fim de salvaguardar e garantir a liberdade de toda a coletividade.

 

Eu reivindico liberdade para a escola, liberdade para a universidade, liberdade para os artistas, liberdade de opinião, liberdade de crítica, liberdade de imprensa, liberdade de antena etc. Todos esses são espaços que fazem parte não do mundo econômico, mas sim do âmbito informativo e cultural-formativo de um país.

 

O povo deveria usar plenamente o poder que possui, mas do qual parece não ter consciência, para construir uma verdadeira democracia. E chagamos então ao tema central de nosso encontro.

 

O povo continua a agir segundo o sistema de delegação: votando, como representante seu, em pessoas propostas pelos partidos. E, assim fazendo, renuncia voluntariamente a seu direito de cogestão política e a seu direito de autodeterminação.

 

Se alguém, na sala, tiver perguntas a fazer sobre o que foi dito até agora, eu pediria que o fizesse logo para que não tenha que voltar a estes pontos.

 

Voz na sala: Gostaria de saber o que significam aquelas linhas sobre o eixo central.

 

Beuys: Ainda não falei delas, mas como já disse, esta é a constituição que provem o povo, em conformidade com o princípio que quer restituir ao povo todos os poderes atualmente detidos pelo Estado.

 

A constituição se subdivide, por sua vez, em direitos fundamentais, estes também determinados pelo povo. Esta linha significa, justamente, um direito fundamental como, por exemplo, a liberdade de imprensa, etc. Ou o direito que regula a propriedade da terra. Ou a questão de propriedade dos meios de produção. Ou a questão da paridade entre homem e mulher. Ou a questão do exército e dos armamentos.

 

 Mas a questão fundamental é – em poucas palavras – a gestão da renda nacional na sociedade democrática. Este é o ponto. Sabemos que uma larga fatia da renda nacional publica é sugada por operações desprovidas de sentido, que não jogam, decerto, a favor da coletividade.

É justo que uma minoria, um governo, decida como administrar o dinheiro público? Ou esta não seria uma decisão da qual toda a comunidade deveria participar?

 

Mais ainda porque o dinheiro que constitui a renda nacional de um país é, de fato, fruto do trabalho de toda a coletividade. Logo, é absurdo que uma minoria seja chamada a decidir, sozinha, sobre a gestão econômica de um país.

 

Visto que estamos juntos, falando de “economia”, eis um símbolo que representa a unidade econômica fundamental: a empresa de produção.

A renda nacional é soma de tudo o que foi produzido pela coletividade no âmbito do processo de produção. O direito, por outro lado, não produz valores econômicos. E menos ainda o sistema escolar/educativo, que, muito pelo contrário, depende do sistema econômico para seu próprio sustento. A mais-valia nasce no que, em termos econômicos, é definido como unidade de produção.

 

De onde se origina a mais-valia? Creio que posso afirmar que ela nasce da criatividade humana. Se quisermos recorrer a uma formula, poderíamos escrever: mais-valia = criatividade, criatividade = renda nacional.

 

Guttuso: A mais-valia aumentou os lucros, não aumentou a renda nacional.

 

Beuys: Exato. Já falei de minha tendência a antecipar os tempos. Meu discurso referia-se a um sistema que ainda não existe. Nunca se experimentou um conceito “limpo” de democracia, de socialismo e de liberdade, pois vivemos em Estados unitários nos quais estes conceitos são mal aplicados, e além do mais em condições de pouca transparência.

 

Nos nossos ditos “Estados Unitários” (e por isso desaprovo e creio que outros deveriam fazer os mesmo), estes conceitos são tratados de modo absolutamente irracional. Mas este fenômeno não poderá durar para sempre. A mais-valia terá de deixar de enriquecer apenas os capitalistas e voltar às origens, ou seja, ao povo, de cuja criatividade foi gerada.

 

Obviamente, uma parte da mais-valia terá que ser reinvestida em virtude do rápido envelhecimento as estruturas econômicas.

Na seqüência da discussão, ficará claro por que, ao falar de revolução, eu parti do conceito de criatividade. O marxismo tentou, de modo extremamente unilateral, fazer com que a revolução nascesse do sistema produtivo. Nós temos que modificar esta lógica fazendo com que o movimento revolucionário nasça do pensamento, da arte e da ciência.

 

Não pretendo com isso diminuir a validade da análise marxista. Marx forneceu-nos uma análise genial da situação do seu tempo, ou seja, do “existente”. Sua análise não tem, no entanto, um alcance prospectivo em relação a uma sociedade nova, mesmo por que, se ele procedesse assim, poderia incorrer nos riscos da contradição.

 

O jovem Marx, mesmo tendo partido o conceito de liberdade, descuidou-se em seguida de sua sucessiva evolução analítica. Sua formação cultural, especialmente econômica, levou-o a dar respostas exclusivamente econômicas a todas as instâncias revolucionárias. Não conseguiu, porem sintetizar um modelo revolucionário nem um modelo de transformação social.

 

Neste ponto, voltando ao conceito de arte, quero afirmar, e em tons decididamente radicais, que somente a arte pode ser revolucionária, seguida, em segundo lugar, pela ciência.

 

Retomando um conceito exposto precedentemente, posso afirmar que a revolução só pode brotar da liberdade, de um modelo radical de liberdade, da arte. Mas quero explicar por que, a meu ver, a ciência limita-se a ocupar o segundo lugar nesta escala de valores revolucionários.

Qual é a relação que une a arte ao conceito de liberdade? Impõe-se neste momento uma digressão sobre estética.

 

Também a ciência, obviamente, é criativa. Mas vamos dar um passo atrás e voltar ao conceito de liberdade. O cientista é livre na medida em que é livre para autodeterminar o seu pensamento. Mas tal liberdade acaba no exato momento em que o pensamento deve subordinar-se às exigências da lógica: o vinculo do pensamento lógico representa, portanto, o limite intrínseco do conceito científico.

 

Schiller, sendo um esteta, afirmou algo extremamente justo: a liberdade, em sua forma mais pura e absoluta, só pode ser encontrada na atividade lúdica.

 

O ser humano é, por sua natureza, sujeito a múltiplos condicionamentos externos: exemplo disso é a própria necessidade de assumir a posição ereta. As necessidades lhe são impostas pelo ambiente mesmo que o circunda. Mas graças à sua liberdade o homem também tem a capacidade de modificar as condições do mundo externo.

 

Voltemos agora um pouquinho atrás e tentemos compreender qual é a essência da liberdade humana. Para fazê-lo, temos que aprofundar nossa consciência do conceito de “arte” e do conceito de “ciência”, pois é ai, nestes dois conceitos, que residem às bases da criatividade humana.

 

O cientista tem capacidade de intervir nas condições de um ambiente desfavorável – basta observar o que acontece no campo tecnológico – e de modificá-las. Foi assim que Galileu e Einstein contribuíram para o crescimento do conhecimento humano. Ambos fizeram uso de sua liberdade. Mas não se tratava, em caso algum, de liberdade absoluta.

 

A ciência, ao modificar as condições ambientais, coloca-se como elemento revolucionário. Mas trata-se efetivamente de liberdade no sentido pleno da palavra? A liberdade científica tem seu limite na imprescindível exigência de pensamento lógico.

 

Nós queremos um novo modo de intervir sobre o ambiente e modificá-lo, um modo no qual o homem possa valer-se, de forma plena e radical, de sua liberdade. Exatamente como acontece no campo da arte. E a este respeito gostaria de citar Schiller ainda mais uma vez, quando ele afirma: “Apenas o homem que joga, livre dos vínculos da lógica, sensível apenas as injunções do belo e da estética, apenas o homem que se autodetermina é um homem livre.” Esta é, ao meu ver,a liberdade absoluta.

 

Considero Schiller o representante máximo dos estetas. Ele afirma que o homem só é homem ao jogar, e que somente no jogar é livre. E como tal, um verdadeiro homem!

 

A arte entendida, portanto, em sentido lúdico: esta é a expressão mais radical da liberdade humana.

 

Amélio (da sala): Posso fazer uma pergunta? O senhor fala de ciência, mas talvez se refira a uma ciência em particular? Existiria uma ciência de tipo capitalista?

 

Beuys: Voltarei em seguida a este ponto. Antes gostaria de falar da ciência ocidental em geral. Em vez de “ciência” poderia usar o termo “conhecimento”.

 

Pretendo falar do conhecimento em geral, sem nenhuma referencia à ciência capitalista, medieval ou dos tempos modernos. Daquele conceito mesmo de ciência que remonta aos tempos de Platão e que se pode, sem dúvidas, definir-se como de matriz ocidental.

 

No interior desta ciência, o cientista é livre para decidir sobre seu pensamento e sobre o tipo de abordagem com a qual afrontar um determinado problema, mas sua liberdade pára diante as exigências e dos vínculos da lógica.

 

Da sala: Não são as leis da lógica, mas é a estrutura classista da sociedade que bloqueia a liberdade cientifica.

 

Beuys: Esta é uma limitação posterior.

 

Gostaria de falar em primeiro lugar dos fundamentos teóricos do conhecimento e apenas em um segundo tempo da classificação que nossa sociedade deu a ciência. Comecemos por analisar o conceito de liberdade! Eu já disse que “necessidade” e “liberdade” encontram-se toda vez que o cientista se vê obrigado a confrontar-se com as leis da natureza. O cientista dispõe, de fato, de um amplo potencial de liberdade e de autodeterminação que, normalmente, usa até o ponto de encontro-confronto com as exigências da lógica. Pergunto-me se o cientista tem consciência do método implícito no conceito da ciência.

 

Gostaria agora de analisar em termos obviamente genéricos, o conceito de conhecimento. Como já ouvi afirmarem da sala, atualmente temos que lidar com um conceito muito preciso de ciência.

 

Trata-se de um conceito extremamente limitado, referente unicamente as ciências naturais – ou ciências exatas. Ou seja, de um conceito positivista, materialista e atomista.

 

Ao dizer isso, é preciso acrescentar também que o conceito atual de ciência tem uma validade extremamente parcial, que por certo não pode se referir a todos os problemas do homem, porque esta baseado preponderantemente nas leis da matéria. E aquilo que se refere à matéria não pode, necessariamente, referir-se à vida.

 

Tomo Platão como referencia, pois tudo aquilo que se refere ao conceito de conhecimento tem início com Platão.

Na filosofia ocidental, Platão assinala o início do processo analítico.

 

Da sala: Por que Platão e não os pré-socráticos?

 

Beuys: Citei Platão intencionalmente, pois os pré-socráticos ainda eram muito ligados a premissas mitológicas. Quero definir um conceito de ciência baseado no método analítico, orientado para o conhecimento com implicações religiosas, ainda fortemente ligado à mitologia. Quero separar o conceito de ciência moderna, assim como é entendido hoje, de outras formas de conhecimento, como a clarividência ou a mística.

Foi com Platão que, pela primeira vez, a razão, entendida como princípio supremo, assumiu a primazia sobre outras formas de conhecimento.

A razão respeita as leis da lógica. Na história ocidental foi progressivamente afirmando-se um conceito de ciência que abraça a compreensão dos fenômenos físicos e matemáticos.

 

Gostaria que todos nos déssemos conta do longo percurso evolutivo que levou à formação daquela que hoje chamamos de nossa cultura, nossa “civilização”.

 

Considero que é muito importante conseguir desenvolver uma consciência do método, enquanto conhecimento da maneira como, no curso da historia, foi se transformando o conhecer humano.

 

De Platão a Aristóteles, através de Descartes, Kant, Hegel, Darwin, Marx, etc: este é o percurso evolutivo que levou a um conceito de ciência baseado essencialmente na matéria.

 

Vou escrever agora “desenvolvimento do pensamento ocidental”, pois é um bom conceito: trata-se de um conceito de ciência eu nasce inicialmente da filosofia, mas que será sucessivamente retomado por naturalistas etc, mais ou menos nos anos em que, com Darwin e Hegel, teve inicio a física moderna, determinando uma cisão cada vez mais nítida em relação a disciplinas de inspiração religiosa ou, de qualquer forma em relação a dogmas ou ensinamentos transmitidos pela cultura da tradição.

 

Assim, de um lado temos gente como Immanuel Kant, Hegel e mesmo Marx; e de outro, um naturalista como Hellholz. (…)

(…) Deixem-me apenas concluir o pensamento que estava expondo acerca do conceito atual da ciência. Um conceito que foi pouco a pouco se restringindo. O conceito ocidental de ciência foi se concentrando no máximo rigor da analise e na máxima observância das leis naturais, ate adquirir um caráter de extrema especificidade. Na pratica, o que restou de uma concepção abrangente, global de ciência foi somente o estudo dos fenômenos referentes à matéria e às leis naturais (…).

 

(…) Gostaria de insistir em um conceito: a ciência moderna, assim como é concebida na moderna civilização ocidental, teve inicio com Platão para em seguida desenvolver-se e modificar-se até que se transformasse no que é atualmente, um conceito com conotações marcadamente positivistas, atomistas e materialistas.

 

Um conceito que se adapta perfeitamente ao estudo e ao conhecimento da matéria e, logo, ao estudo e ao desenvolvimento da tecnologia.

Um conceito, portanto, que pode ser admiravelmente aplicado à evolução tecnológica. E à evolução das maquinas. E como as maquinas são de maneira intensiva das leis naturais e da própria matéria, esta mesma ciência dispõe assim dos melhores pressupostos para a criação de novas tecnologias. Não é, porem, assim tão evidente que ela seja capaz de controlar suas implicações de caráter sociológico.

E agora vamos adiante, gostaria, de fato, de passar … (…)

 

(…) sabemos que a contagem de nosso tempo parte daquele que é historicamente definido como o Ano Zero. Mas seria interessante que todos nós déssemos conta, de uma vez por todas, de que todas as nossas datas partem do ano do nascimento de Jesus Cristo.

Amélio: Mas o senhor não acabou de dizer que tudo começava com Platão?

 

Beuys: Platão remonta mais ou menos a mesma época. E de resto não estou me referindo a um ano em particular, mas antes a uma época histórica, a mesma em que teve inicio o pensamento analítico da humanidade.

 

Gostaria de tentar fixar um conceito. No final desta época evolutiva, o materialismo cientifico provocou a produção de um novo conceito, o conceito de sociologia. Na pratica, foi o próprio Marx quem forjou este novo termo, mesmo se por sociologia entende-se tudo aquilo que diz respeito ao interesse e ao cuidado com o próximo. Tanto que seria de se perguntar se tal conceito não estaria recolocando, de forma cientificamente “revista e corrigida”, as mesmas finalidades que foram antecipadas por aquele antigo autor que nasceu no Ano Zero e morreu 33 anos depois. Cristo também disse: “Eu vos tornarei livres!” Gostaria de evidenciar o paralelismo que existe entre estes dois acontecimentos. Mas remonto agora o conceito de ciência que levou ao materialismo.

 

Da sala: repita mais uma vez por favor.

 

Beuys: eu disse que a origem do moderno pensamento cientifico – aquele mesmo que de pensamento totalizante e abrangente foi se reduzindo progressivamente a uma simples somatória de valores mensuráveis (medir, pesar, contar são termos recorrentes) – remonta, na pratica, a uma época paralela ao período compreendido entre o nascimento e a morte de Cristo. Foi naquela época histórica, e de uma forma geral, na mesma parte do mundo em que nasceu e se difundiu o cristianismo, que teve inicio o longo processo evolutivo que levaria a consolidação do pensamento cientifico assim como nós o conhecemos hoje.

 

Da sala: então, se entendo bem, os dois processos tiveram um caminho evolutivo paralelo.

 

Beuys: supõe-se, a bem dizer, que pode ter sido um único processo. Já expliquei como o pensamento cientifico ocidental despiu-se de todas as implicações de natureza mitológica ate alcançar as formas mais concisas e sintéticas do “materialismo”.

 

Trata-se agora de estabelecer se este processo de sucessiva redução foi realmente um processo de emancipação, e portanto, de libertação de qualquer tipo de superestrutura criada pelo espírito humano.

 

Querendo aceitar a hipótese de que se tratava realmente de um processo de libertação, vem-me a mente de imediato uma dupla ordem de interrogações do tipo: como teve lugar a libertação? E sobretudo, libertação de que?

 

Se houver pontos pouco claros seria interessante abordá-los logo para esclarecê-los. Caso contrario, proponho que continuemos, e passemos à analise do caráter emancipatório implícito no conceito moderno de ciência. Todos de acordo? Direi então qual é a minha opinião a esse respeito. Considero que o homem tenha se libertado do peso de tantas antigas superestruturas e, em particular, de velhas implicações de tipo religioso (o poder do grande sacerdote no âmbito da comunidade, o poder dos anciãos no âmbito da família ou do grupo: poderes tais que anulavam qualquer liberdade de tipo individual).

 

Tentarei fazer uma interpretação extremamente pragmática daquilo que expus até agora. Outrora o homem era vinculado aos condicionamentos impostos pela tradição. A convicção religiosa era um fator determinante na sociedade, que era então dominada pelos sacerdotes e pelos anciãos. Uma sociedade, por conseguinte, baseada em valores espirituais, uma sociedade fortemente coletivizada e, como tal, desprovida de qualquer forma de individualismo. O coletivo vivido, portanto, como aniquilação total da liberdade individual.

 

Se nesse ponto alguém quiser fazer alguma pergunta, estou pronto para responder.

 

Eu disse, então, que o homem liberou seu pensamento de qualquer patrimônio de espiritualidade e de transparência através de um método de progressiva concentração do próprio pensamento e do conhecimento na matéria.

 

Mas gostaria ainda de chamar a tenção de todos para o paralelismo existente entre os acontecimentos do Ano Zero. E portanto para a figura de Cristo, pois Cristo também fez da liberdade do homem um dos pontos fortes de sua doutrina.

 

Cristo dizia: “Eu vos farei livres!” Logo não posso deixar de considerar que, à parte as afirmações da Platão e as repercussões de seu pensamento sobre a história da filosofia ocidental, este princípio cristão teve, sobre a evolução do conceito de ciência, uma incidência maior do que aquela que teve sobre as igrejas.

 

Digo isso porque as Igrejas são instituições que jogaram o homem em condições de não-liberdade, na medida em que repropõem os antigos vínculos da tradição mitológica. As igrejas marcaram também um retorno ao coletivo, ao antigo, ao velho mundo já então superado. Nas igrejas não se encontra nenhuma correspondência com o conceito de emancipação postulado pelo cristianismo, conceito que, ao contrario, encontrou uma realização mais pontual no âmbito da ciência.

 

É claro, nesse ponto, o paralelismo de intenções entre o pensamento de Cristo e o pensamento científico: liberar o homem e, sobretudo liberar-lhe o pensamento. Este é Cristo e esta sua linha de ação. (desenho)

 

Gostaria de retornar ao conceito de sociologia, isto é, de fraternidade. Uma outra analogia entre pensamento materialista, embora em termos científicos ela se apresente como uma derivação direta da analise econômica feita por Marx.

 

Já disse antes que o jovem Marx tomou como ponto de partida, no início de seus estudos, a doutrina cristã. Sua atenção de estudioso e pensador concentrava-se nos anos juvenis, no conceito de liberdade.

 

 Mas como o passar dos anos, estando ele já imerso nos estudos de tipo econômico, abandonou aquela linha de pensamento para concentrar-se no aprofundamento da analise das condições e relações que governam a economia. Matéria esta que nada mais tinha em comum com o cristianismo.

 

Gattuso: Recuso-me a fazer esta distinção, atualmente usada abusivamente e também bastante superada, entre o jovem Marx e o Marx economista, pois é claro que Marx chegou a estabelecer uma teoria econômica geral da história da sociedade como luta de classe, uma teoria econômica baseada naquilo que todos conhecemos, através de seus estudos juvenis, voltados para a pessoa humana. Porque não se pode chegar a uma teoria geral da sociedade sem conhecer a pessoa humana. Porque qualquer teoria que não parta da pessoa humana é uma teoria abstrata que não serve a ninguém e não pode levar ao grande resultado que o marxismo conseguiu, como o cristianismo. Porque o cristianismo é justamente a mesma coisa. É claro: estamos de acordo. Mas não vamos fazer distinções excessivas entre o jovem Marx etc.

 

Beuys: Estou de acordo com você. Mas queria dizer outra coisa. Não pretendia destacar tanto a distinção entre jovem Marx e o Marx comunista, mas antes, ao contrário, reforçar a imagem daquele Marx tão marcadamente dotado de capacidades analíticas; daquele que soube analisar e descrever tão especificamente as relações econômicas e o mecanismo que induz a maioria os homens a submeter-se ao jogo do mundo capitalista. Ele foi genial ao elaborar esta teoria analítica; esqueceu, porem, de traçar um modelo de liberdade, e sua analise foi sucessivamente focalizando-se cada vez mais nas relações de produção que regulam a economia.

 

Devo precisar mais uma vez que Marx não fez do conceito de liberdade o seu ponto de força, o conceito revolucionário dominante em sua filosofia.

 

Amélio, gostaria e dar um passo atrás.

 

Vimos que nos ensinamentos de Cristo são recorrentes as palavras: “Eu vos farei livres!”

 

E demonstrei também como a evolução do pensamento analítico ocidental restitui ao homem o livre individualismo. E é apenas em virtude desta capacidade que o homem pode caracterizar-se hoje como um sujeito político, capaz de autodeterminar-se. Se a evolução histórica não lhe tivesse restituído a integridade do pensamento individual, o homem não estaria certamente em condições de fazer face à autodeterminação.

 

Mas repito ainda mais uma vez: o cristianismo não se realizou nas igrejas tanto quanto na evolução do pensamento científico ocidental.

O preço pago por este resultado foi o isolamento intelectual do homem.

 

Pois a afirmação da autodeterminação e do livre pensamento se fez acompanhar por um crescimento do egoísmo, um conceito que impede ou pelo menos torna difícil a instauração daquela ponte ideal que deveria unir os indivíduos entre si.

 

E neste contexto insere-se um homem que da ciência positivista, ou seja, do estudo pragmático da economia política consegue elaborar e precisar o conceito de sociologia.

Amélio: Quem? Que homem?

 

Beuys: Marx! Ele desenvolveu, sob o nome de “sociologia”, aqueles mesmos postulados que Cristo, muitos anos antes, chamara de “amor”. Em outras palavras, diante de uma perigosa tendência ao isolamento, ele conseguiu encontrar a única liga que poderia tornar possível o nascimento e a consolidação das relações inter-humanas.

 

Terminada esta primeira enunciação dos princípios fundamentais que norteiam o conceito de pensamento científico, é preciso repetir, de uma vez por todas, que as instancias avançadas por homens que, como Marx, refletiram e estudaram longamente sobre a relação do homem como outro homem não encontram espaço no pensamento científico positivista.

 

As problemáticas inerentes às relações humanas e ao conceito de solidariedade não fazem parte da bagagem de interesses do pensamento positivista, dedicado exclusivamente ao estudo da matéria inanimada e das leis físicas que regulam seu comportamento.

 

Isso é um dado de fato. Mas as razões, as causas que determinam as condições atuais do individuo remontam a épocas muito anteriores àquela da sociedade burguesa, fruto da estrutura social imposta pelo capitalismo. E esta última é, por sua vez, produto de condições históricas precedentes.

 

A história com efeito mostrou-nos que, por volta do final do século passado, no período compreendido entre 1860 e 1880, teve lugar uma revolução burguesa que, de fato, alargou a participação no processo criativo, estendendo-a a um número maior de indivíduos. A revolução burguesa foi uma revolta – vencedora – contra a preexistente sociedade feudal.

 

Repito, portanto, para fixar o conceito: assistimos a uma revolução burguesa que permitiu a participação de um maior número de indivíduos nos processos criativos (ciência, arte etc.). Quais foram os instrumentos que tornaram possível o sucesso da revolução burguesa?

A revolução industrial é, efetivamente, a seqüência lógica da revolução burguesa. Podemos, portanto, afirmar tranqüilamente que a época da revolução burguesa ainda não teve seu ocaso, pois prossegue na época atual. Quando os burgueses tomaram consciência do nascimento de uma nova classe social, o proletariado, comportaram-se exatamente como senhores feudais antes deles, utilizando o conceito positivista de ciência como instrumento de repressão e de marginalização de uma maioria de indivíduos de um processo de revolução permanente.

Notamos, de fato, que aquele mesmo movimento revolucionário que abrira para as massas a participação no processo criativo hoje exauriu o seu papel propulsor. O pensamento positivista burguês impede – por exemplo, nas escolas – a expansão do processo revolucionário. Exatamente como o conceito positivista de ciência, que em um primeiro momento mostrara-se revolucionário, impede hoje o desenvolvimento da sociologia.

 

Hoje já estamos assistindo às tentativas do sistema capitalista de instrumentalizar o concito de ciência para reproduzir uma classe de tecnocratas que seja homogênea e funcional em relação ao sistema.

 

Guttuso: Que joga exatamente com o enorme desenvolvimento da ciência tecnológica e com atraso das consciências, do desenvolvimento moral e social que havia.

 

Amélio: Mas ele até usa isso, tenta aumentar a defasagem existente entre a tecnologia e a consciência dos indivíduos. Usa, portanto, o conceito de ciência para incrementar a tecnologia às expensas da sociologia.

 

Beuys: O concito positivista de ciência – antes revolucionário – hoje voltou-se contra o homem. Isso não significa, obviamente, que queremos refutar ou renunciar ao processo tecnológico.

 

Pois a sociedade, e logo todos os homens, terá necessidade, no futuro, de uma tecnologia mais avançada e portanto mais produtiva.

Mas o desenvolvimento de uma tecnologia desse tipo, mais avançada e mais produtiva, que possa ser posta a serviço de todos os homens, é dificultado e desviado pelo sistema capitalista, interessado unicamente na própria auto-reprodução, ou seja, na satisfação de suas necessidades de auto-reprodução.

 

Alguém tem perguntas a fazer?

 

Da sala: Queríamos saber por que você considera o método positivista um método revolucionário.

 

Beuys: Já tentei explicar que o método positivista foi revolucionário no momento em que a burguesia serviu-se dele para insurgir-se contra o poder dos senhores feudais. Os propulsores e autores da revolução antifeudal, aquela mesma que permitiu a ampliação da participação criativa, não eram aristocratas, mas burgueses como Faraday, Lavoisier etc. Eles serviram-se da ciência positivista para desencadear a revolução contra os privilégios criativos da aristocracia, e tiveram sucesso.

 

(Pergunta da sala, não perfeitamente audível ao microfone. A voz do público não esta de acordo com esta interpretação do positivismo. Considera que ele é uma manifestação da realidade, enquanto o marxismo exprime uma vontade de modificação da realidade.)

 

Beuys: estou de acordo com a senhora. Mas continuo a querer entender de que maneira, exatamente, formou-se o atual conceito de ciência.

Voz da sala: talvez não tenha ficado claro o sentido da pergunta. O senhor afirmou que a ciência positivista, em um determinado período histórico, foi revolucionária, e a senhora não esta de acordo com esta afirmação.

 

Beuys: O conceito positivista de ciência não é mais revolucionário, hoje, na medida em que está voltado exclusivamente para o desenvolvimento da tecnologia e da revolução industrial. Para o futuro, prevê-se uma consolidação do conceito positivista, atomista e materialista, na qual não haverá mais espaço para implicações de natureza sociológica e psicológica, com um conseqüente aumento da alienação do homem, privado de sua espiritualidade e debilitado em sua vontade e em sua capacidade de autodeterminação.

 

Voz do público: Mas para voltar à pergunta, este mesmo conceito, quando surgiu, teve efeitos revolucionários.

 

Beuys: Certo, era revolucionário. O desenvolvimento tecnológico a que assistimos nesta nossa época tornou-se possível graças à vitória da revolução burguesa.

 

(Uma senhora do público rebate dizendo que o conceito de ciência nunca foi revolucionário, pois desde sempre foi instrumento da classe dominante.)

 

Beuys: Sim, mas não se pode esquecer o poder absoluto de que gozavam os senhores da nobreza em relação ao outros homens. Estes últimos eram, por assim dizer, simples escravos. A revolução burguesa fez, sim, com que um numero sempre maior de indivíduos se arrogasse o direito de se apoderar dos instrumentos da cultura. E de qualquer forma a revolução burguesa certamente fez com que uma ampla maioria começasse a ter acesso aos processos de formação e de criação.

 

Voz do público: O conceito de revolução é, portanto, relativo.

 

Beuys: Relativo. A revolução burguesa produziu estes efeitos.

 

Público: Marx a chama de “a grande revolução”

 

Beuys: Eu também a chamo assim, pois ainda vivemos nesta fase revolucionária. Mas precisamos de uma revolução muito, muito maior.

Menna: O senhor falou então da criatividade da arte como de uma das formas fundamentais de libertação do homem.

Beuys: Sim, comecei afirmando este conceito.

 

Menna: Depois falou do pensamento analítico como de um outro fator de libertação do homem. Então eu gostaria de saber que relação existe entre criatividade e pensamento analítico; e quais são os modos, paralelos ou diversos, com que estas duas faculdades contribuem para a libertação do homem.

 

Beuys: Já tentei explicar, anteriormente, que caminhos percorreu, no curso da história, a criatividade humana e como método analítico materialista foi visto como um primeiro passo em direção a um processo mais amplo de emancipação do homem. E expliquei também como, em um dado momento da história da civilização ocidental moderna, o método analítico mostrou-se revolucionário.

 

Hoje assistimos a uma nítida inversão de tendência desta função liberadora inicial, e o método analítico, na falta de métodos novos, tem resultado regressivo e anti-revolucionário.

 

Amélio: Mas quais são estes novos métodos?

 

Beuys: Não tenho receitas a propor para a solução desse problema. Considero que o primeiro passo consiste em tornar consciência, de forma completa e exaustiva, da situação atual, e para fazê-lo é necessário relacionar todos os aspectos do presente com as indicações que nos vem da evolução histórica.

 

Por uma questão d praticidade, responderei dizendo que devemos dedicar uma maior atenção analítica ao pensamento político a aos vários âmbitos do social sobre o qual age tal pensamento e, em particular, ao âmbito da arte, da ciência, da escola, dos mass media etc.

E veremos, justo no âmbito de nosso sistema, quão pouco os governos, as instituições, em particular nos países europeus, estão dispostos a conceder ao financiamento e à renovação da escola e da cultura.

 

Vivendo na Alemanha, não conheço a situação italiana e não me sinto, portanto, autorizado a expressar-me sobre esta realidade específica.

Gostaria agora de precisar que a vanguarda política não pode mais ser identificada com a classe operária, mas sim com os estudantes, pois são os estudantes que tomaram realmente consciência das contradições do sistema, u mostrou justamente nas escolas as suas falhas mais evidentes, Até mesmo o debate atual sobre o socialismo e sobre uma sociedade nova e diversa não toma impulso na classe operária, mas na vanguarda política dos estudantes.

 

 Amélio: Fale-nos da experiência da escola livre e alternativa que o senhor levou adiante em Düsseldorf.

 

Beuys: Não há escola que não tenha experimentado a dificuldade de encontrar os meios de que necessita. A partir dessa constatação, os estudantes desenvolvem uma consciência revolucionária que vem assumindo conotações de movimento revolucionário – como já acontecia nos tempos de Rudy Dutscheke.

 

Os estudantes tomaram consciência de como e quando o homem é esmagado pelo sistema, e de como a sociologia é, não por acaso, a grande marginalizada entre todas as disciplinas.

 

Em uma primeira fase, o movimento estudantil valeu-se do concito burguês, tradicional, positivista de ciência para levar adiante as transformações e o desenvolvimento da sociologia. E foi um erro. Nesta primeira fase, os movimentos de esquerda nunca perderam a chance de se expressar desfavoravelmente sobre a arte, considera um produto supérfluo e secundário em relação a outros considerados prioritários, em sentido revolucionário.

 

Trata-se, na prática, da teoria das superestruturas.

 

Mantenho desde o início a opinião de que o conceito positivista, burguês de ciência, não pode representar um métodos prático para o desenvolvimento da sociologia, de que somente na arte e através da arte pode-se encontrar um instrumento e um método de realização e de desenvolvimento.

 

A arte repropõe, portanto, o problema da criatividade total.

 

A revolução pode nascer apenas da liberdade do homem.

 

Pode nascer apenas de um novo modo de pensar, pois somente as novas idéias podem levar à realização de uma nova realidade.

E segundo a fórmula que tracei no início, a criatividade é parte da renda nacional de um país.

 

Voz da sala: Como se pode colocar tudo isso em prática?

 

Beuys: Eu me expressei em termos muito práticos. Falei do sistema escolar-educativo dos nossos países e de como nossos sistemas atuais negligenciam, intencionalmente, a escola. Mas, tendo que definir a ação concreta, diria que todos temos que dar nossa contribuição para uma tomada de consciência coletiva, tentando impedir que as pessoas continuem a sustentar o sistema político atual.

 

Mas quais seriam as causas de uma relação social assim tão negativa? O sistema! E qual sistema? Como definir o atual sistema dominante? Poderíamos minimizar o problema respondendo: o sistema capitalista. Mas a questão não é tão simples assim, exige maior precisão. O sistema capitalista é típico de um ordenamento político bem preciso que chamaremos de sistema dos partidos ou “ditadura dos partidos”.

O termo “democracia” significa, ao contrario, “poder do povo”.

 

No momento em que eu, escolhendo a via da delegação, voto por um partido político, não faço senão renunciar voluntariamente à expressão da minha vontade, ou seja, renuncio à minha própria faculdade de voto.

 

Como realizar, concretamente, uma democracia? Este é o problema central.

 

Temos que fazer com que os homens tomem consciência do verdadeiro conceito de democracia. O sistema de partidos, o sistema capitalista, é apoiado e sustentado por partidos de todas as naturezas e de todas as tendências, seja direita, seja de esquerda. O único objetivo dos partidos, de todos os partidos, é de chagar ao poder. Quanto ao resto, nada os preocupa de verdade.

 

As pessoas só parecem interessadas nos partidos nos momentos eleitorais.

 

Os indivíduos que realmente querem uma democracia diversa devem, portanto, organizar-se para realizar aquela que eu chamo de “democracia direta”.

 

É difícil transmitir aos outros a minha intensa consciência do exclusivo interesse, cínico, dos partidos em governar. E por isso digo basta aos governos!

 

Para comunicar-me com meus semelhantes escolhi o método da arte, a única maneira com a qual consigo ajudar os outros a libertarem-se da própria alienação. Este é o tipo de organização que, pessoalmente, dei a mim mesmo para realizar a democracia direta. É uma organização que refuta os partidos, mas que desenvolve um trabalho extremamente prático e concreto.

 

(Uma voz do público diz que os partidos, pro mais imperfeitos que sejam, servem como instrumento, como meios de libertação. O orador acredita na exigência do partido como instrumento de libertação do homem. Declara-se de acordo com Beuys no juízo negativo que ele faz dos partidos, mas depois reafirma o papel insubstituível do partido como instrumento ativo no processo de libertação do homem).

 

Beuys: É um direito seu; uma livre escolha. Eu não posso senão desejar o máximo crescimento dessa prática de liberdade individual, que representa o princípio basilar do meu pensamento. Do meu canto, insisto em que sou pessoalmente convencido de que os partidos estão voltados exclusivamente para a obtenção do poder e, coerentemente, recuso este domínio de uma minoria sobre a maioria dos homens.

São conhecidas de todos, há muito tempo, as misérias dos partidos políticos.

 

Amélio: Quero dizer justamente isso. Que existe um problema muito importante, o da estrutura da força agressiva do homem contra o homem. Menna diz que em sua opinião, os próprios partidos são portadores dessa agressividade, ou melhor, que a agressividade do homem contra o homem passa através da estrutura dos partidos. E o senhor se rebela contra esta tipo de estrutura.Beuys: Quero tomar como exemplo o pensamento do Partido Comunista Alemão, que age no sentido exatamente contrário àquele eu são as minhas reivindicações. Lá onde reivindico uma maior liberdade criativa e uma maior possibilidade de autodeterminação, como por exemplo, no âmbito da escola, da instrução, o Partido Comunista exige um controle ainda mais severo por parte do Estado, prometendo controles mais rigorosos e diretos para quando finalmente tiver chegado ao poder. Na prática, o significado dessas afirmações é que o partido não é contrario a uma escola programada e controlada, mas é apenas contra o atual governo; e que, uma vez no poder, o controle do sistema escolar será ainda mais rígido que o atual.

Um exemplo que, mais uma vez, exprime apenas preocupações de tipo governativo. As pessoas não conseguem sequer conceber o verdadeiro conceito de “democracia”. “Democracia” significa literalmente, “poder ao povo”.

 

Então, é evidente que o Partido Comunista Alemão é condicionado por sua ideologia. Portanto, no momento em que tomar o poder, sua ideologia irá transformar-se em um fator coercitivo do mesmo tipo e da mesma virulência que uma ideologia fascista. E isso é negativo. No futuro, não poderá mais acontecer que uma minoria, seja ela a expressão de um credo filosófico ou ideológico, exercite o seu poder opressivo sobre os outros homens.

 

Menna: A democracia direta é um ponto de chegada, como a liberdade é um ponto de chegada. Quando você falou das três dimensões – liberdade, democracia, socialismo – não levou em conta o fato de que a palavra “liberdade” devia ser escrita sob “democracia” e sob “socialismo”, isto é, a liberdade não é, em si, um conceito que possa excluir as formas através das quais se realiza. A liberdade se realiza através de certas formas. A “democracia” é socialismo, portanto, sob as palavras “democracia e socialismo” deve-se escrever “liberdade”. A liberdade é uma conquista.

 

Beuys: Concordo com você acerca do fato de que a liberdade deve ser colocada em primeiro lugar. Não estou, porem, de acordo sobre o fato de que se possa obter liberdade partindo de pressupostos e de condições de natureza econômica. Estes conceitos, conformes ao ensinamento marxista foram aplicados durante toda a primeira metade do século nos chamados “Estados socialistas”.

 

Hoje, somos obrigados a constatar que nesses chamados Estados socialistas e na Rússia Soviética há menos liberdade do que aquela que existe em nossos países. (…)

 

(…) Para concluir, gostaria de voltar a um ponto. Deixarei de falar dos países em via de desenvolvimento e vou me limitar aos paises industrializados em que existe ideologia política – sejam eles países do bloco oriental ou mesmo as chamadas “democracias” socialistas (um conceito a meu ver, totalmente desprovido de significado, dada a ausência de liberdade) ou as chamadas democracias fictícias ou democracias formais de nossos países – democracias representativas ou parlamentares. Em todos esses sistemas, assistiremos em um futuro próximo a um fenômeno de aumento do nível de vida. Todos os sistemas compreenderam, de fato, que para manter a paz interna basta elevar o nível de vida das pessoas. E para fazer isso basta aumentar os salários, não importa se à custa dos aspectos humanos da sociedade!

 

O problema que neste momento mais interessa ao mundo não é um problema de caráter econômico, de meios de produção ao nível de vida (todos problemas que se referem preponderantemente aos países em via de desenvolvimento); o problema dominante é a falta de um modelo humano. Falta uma ciência sociológica adequada às exigências, falta uma discussão sobre o homem. Não é suficiente discutir sobre as necessidades econômicas da humanidade, o mesmo interesse deve voltar-se para a satisfação de suas necessidades espirituais. Como realizar um processo de re-humanização do homem?

 

Menna: Há o problema do mariner americano que toma banho três vezes por dia: vai fazer um massacre no Vietnã e depois toma uma ducha; depois… Na América eles fazem a revolução do chuveiro, mas lá eles fazem a revolução porque não tem esgotos! Tentemos entender o que é o homem e depois veremos o que lhe pode ser útil; não liberdade e ponto. Porque isso não serve para nada!

 

Guttuso: Mas você esta fazendo justamente isso. Quer dizer…

 

Beuys: Não entendi o que queria dizer.

 

Tradutor: Disse que o homem tem necessidade de ajudas concretas, não bastam às palavras. É, portanto, necessário distinguir com exatidão os desejos e as necessidades.

 

Beuys: Somos nós mesmos os melhores juízes de nossas necessidades e de nossas aspirações. Eu, por exemplo, quero um sistema, busco uma estrutura na qual o homem seja livre para dar sua própria contribuição com formas diretas de participação.

 

Guttuso: De fato, a participação não exclui o próprio ponto de vista pessoal, critico e criativo, pois não há renuncia.

 

Beuys: É isso mesmo, mas este primeiro contato com a liberdade, esta fase em que o homem tem plena faculdade de expressar seus desejos, suas necessidades e seus pensamentos, deve ser colocada na fase educativa do indivíduo, ou seja, naquele lapso de tempo em que a criança é adestrada para se tornar um homem; deve, portanto, encontrar sua sede natural no âmbito escolar.

 

Mas abstraindo-se o sistema escolar-educativo, todo homem deve ter condições de autodeterminar-se. E poderíamos também discutir como aumentar e afinal a criatividade, partindo de uma pequena predisposição inicial. Esta também poderia ser uma resposta à sua pergunta. (…)

(…) A cada vez que se discutem temáticas de tão amplo fôlego, como criatividade, arte e ciência, recoloca-se o problema da utilidade real que tais conceitos podem ter para o homem. Seriam estes conceitos realmente úteis pra a comunidade, ou seriam conceitos destinados a satisfazer apenas parte mínima das necessidades, mais precisamente as referentes ao desenvolvimento tecnológico?

 

Eis então que a arte – seja no velho, seja no novo conceito – a ciência – desde que disposta a refletir sobre seu modo de colocar-se conceitualmente – procedem em duas linhas paralelas e agem como estimulo para uma nova tomada de consciência. (…)

 

(…) Voz do público: parece indubitável – para ir ao encontro daquilo que, a um ver justamente, o próprio Guttuso disse – que é a estrutura da sociedade que deve ser posta em crise. Este é o problema que o senhor havia proposto e que em um certo momento deveria ser desenvolvido: o problema da cultura hoje.

 

Beuys: O verdadeiro problema é que a cultura é administrada pelo Estado.

 

Público: Isso é muito justo, mas não basta. E remeto-me também a Guttuso. Então se dissermos que o Estado… e tudo bem, desde que isso seja verdadeiro, ou seja, que o estado se opõe à cultura. Eliminando-se então este estado por um instante, qual é o problema da cultura? Quais são os lados negativos da cultura hoje?

 

Beuys: eu já disse antes que a cultura é administrada e gerenciada pelo Estado, o mesmo Estado que se apropriou do concito de positivismo cientifico, introduzindo-o nas escolas como modelo educativo.

 

Fabio Mauri: Gostaria de perguntar se Beuys pensa que a persuasão verbal é um instrumento de luta e se é um instrumento de luta suficiente. Beuys propõe um projeto; a didática dessa escola na qual deveria ter inicio a revolução. Beuys propõe que se ocupe as escolas para, em seguida, fazer uma escola livre. Então eu pergunto: tudo isso pode ser feito por meio unicamente da palavra?

 

Beuys: Através da palavra? Não! Através da ação. Esta é uma batalha em que a persuasão verbal não poderia bastar. Determinante é a realização concreta das idéias nas ações e nas obras. Com este objetivo, criei em Düsseldorf um verdadeiro “escritório”, uma organização à qual as pessoas podem dirigir-se para ter noticias, informações.

 

Mauri: Beuys pensa que o conhecimento, isto é, o exato conhecimento de um modo novo e verdadeiro de entender a história e a própria identidade atual seriam a revolução em ação? Ou pensa que o mal existe? Ou seja, pensa que alguém pode se opor à verdade? Ou seja, pensa que anular um erro significa liberar o homem e que tudo isso significa realizar esta nova verdade? Ou pode existir também a possibilidade de não-adesão a esta verdade? Isto é, de cometer pecado por vontade própria. E então, como esta sociedade muda ou redime? Pensa que existe apenas erro ou existe também pecado?

 

Beuys: É claro eu existe pecado, alem do erro. E desse pecado todo nos somos responsáveis, não apenas o sistema capitalista.

Mauri: As idéias são coisas e devem ser tratadas como são tratadas as coisas: são objetos que temos diante de nós.

 

Beuys: Eu tento tratá-las como trato as esculturas. Vejo as idéias como uma nova forma de escultura. Creio que todos nos aqui presentes estamos conscientes da importância e da urgência de dar um primeiro passo, de começar a fazer alguma coisa. E visto que, limitando-me ao que posso supor, a maior parte de nós pertence à classe privilegiada, digo que a culpa é nossa também e não somente do sistema capitalista. Todos somos chamados, em primeira pessoa, para, engajando-nos, dar nossa contribuição.

 

A questão principal consiste me acordar o homem do refluxo individualista, subtraindo-o do “privado”. O presente é caracterizado em toda parte por uma forte tendência a despolitização, á privatização, ao conformismo. É tarefa nossa fazer, por todos os meios possíveis, com que as pessoas voltem a se interessar pelo “social”, a retomar o seu inato sentido coletivismo.

 

Guttuso: Acredito que antes de despolitizar-se é preciso politizar-se. Isso é o que penso. No fundo, o discurso com você vai muito bem, isto é, o discurso com Beuys segue bem ate um certo ponto, daí em diante não continua bem. Por que? Porque o senhor não acredita em forma alguma. Eu acredito nestas formas, em uma ação no interior destas formas.

 

Beuys: É verdade, não acredito mais nas velhas formas, mas acredito nas formas em geral e estou disposto a crer em novas formas. Não foi por acaso que ate construí uma organização.

 

Bom, estupendo! Obrigado!

 

Bibliografia: BEUYS, Joseph. A revolução somos nós. In Escritos de Artisitas: anos 60/70. COTRIM, Cecilia; FERREIRA, Glória (org). Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2006

Transcrição de Michel Amary Neto

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